15 de jan. de 2008

Fragmentos de Moçambique (1992)

12.
No condomínio onde eu vivia, nesta vida meio de filho de diplomata, haviam outras figuras da minha idade filhos de estrangeiros de todos os lados. Lembro de duas meninas: Virginia e Malena. As duas deviam ter algo entre 12 e 14 anos. Malena era filha de portugueses, gorda, enorme, usando um maiô envergonhado que tentava esconder suas formas pouco femininas. Virginia era filha de ingleses e era linda. Não tinha o corpo ainda todo desenvolvido como várias das meninas dessa idade, ainda era um corpo entre criança e adolescente, algo em construção. Mas tinha algo em seu olhar que ia além de tudo isso. Algo no gesto de secar o rosto, enrolada na toalha, escondendo o biquíni que escondia seu corpo prestes a explodir em doces hormônios! Ficamos durante toda a tarde brincando na piscina e conversando. Nadar e afundar-se o máximo possível e ver os movimentos graciosos de Virginia. A inglesinha nadava como um peixe, o corpo todo oscilava num movimento único que a levava de um ponto a outro com uma velocidade espantosa. Esses frames eram cortados pela cortina adiposa de Malena que insistentemente se interpunha entre Virginia e eu. Virginia brincava ao longe, mantendo sempre uma distância de segurança, como que sabendo que um contato físico era extremamente desejado. No máximo jogava água e ria mergulhando para cortar a água com sua hidrodinâmica de menina com escamas! Malena não! Tentava se aproximar ao máximo e quanto mais física a brincadeira melhor. Ela era gorda, bruta e torpe. Passou longos momentos tentando me afogar, o pior é que ela era bem mais forte. Ser afogado por uma menina e não conseguir se desvencilhar poderia ser algo humilhante para um garoto de 12 anos. Mas naquela situação era quase um acordo tácito. Ta bom... eu olho a sua amiguinha linda e você me afoga de ciúmes. Assim eu me sentia menos culpado. Depois de horas de piscina sentamos nas cadeiras de plástico para comer uma porção de fritas com gosto de cloro com os dedos enrugados. Eu contava histórias sobre o Rio de Janeiro. Nós estávamos em Maputo, mas o Rio parecia algo tão ou mais exótico para elas. Não bastava falar das belezas naturais e dizer que nós também tínhamos cinemas e televisão e que nossas novelas eram exportadas para o mundo todo e que a literatura brasileira era imensa. Para fazer uma imagem forte eram necessárias cenas de guerra! Os arrastões na praia, o caos das favelas, as valas negras que desciam para o mar e toda essa vida que se esgueirava por entre a violência buscando uma passagem para o paraíso, como uma planta que cresce se contorcendo para buscar o sol. Eu contava histórias absurdas de como havia fugido das perseguições de traficantes e bandidos, de como a vida no Rio era por um fio, entre o morro o mar e uma bala perdida. Virginia era toda enrolada na toalha, batendo os dentes de frio, com os dedos velhos enrugados, bochechas coradas, olhos claros e suaves. Ela olhava um horizonte inexistente, talvez tentando achar um Hyde Park na cabeça ou procurava alguma nuvem cinzenta no céu azul intenso com o sabor do índico. Cada movimento de Virginia fora da água era tão gracioso quanto dentro. Mexia pouco o corpo, sentada com as costas eretas. Buscava as batatas com um palito e as comia devagar uma a uma. Até tremendo de frio o corpo dela mexia de forma incrível como uma pétala ao vento. Já Malena atacava as batatas com uma fome ancestral, eram mãosadas furiosas que esmagavam batatas coradas entre seus dedos gordos. Ela enchia a boca e continuava falando sem parar, sua tentativa de se comunicar era comovente e beirava a simpatia, mas ela se mexia como uma morsa e buscava desesperadamente um contato visual, uma cumplicidade que não viria. Fora d´água ela não podia me afogar e sem me castigar era como se não valesse eu me perder olhando sua amiguinha. Com 12 anos começamos a descobrir essas selvagerias da vida, começam a nascer na carne estas primeiras cicatrizes. Virginia era linda, Malena era gorda. Depois daquele dia nunca mais vi nenhuma delas.
7D

2 comentários:

Anônimo disse...

Escribo en castellano.. esas selvagerias da vida no son tan crueles en la infancia como más tarde cuando el salvajismo frente a los otros se presenta como algo casi inevitable, como una especie de engañosa evolución. De chiquitos todos fuimos crueles (y cómo!) ahora pareciera que de grandes aprendimos y no nos queda otra y lo bello duele tanto...
En fin, chamuyero, no más preguntas Sr. juez.. ;)

Anônimo disse...

Domingos,
não sabia que vc tb escrevia ficção, bacana saber. Bom texto, melhor ainda é o "como" que faz dele bom. Imagiste! Cru e cinematográfico, o que não quer dizer que não exista nele sofisticação. Bacana! Gostei de verdade, prossiga!