28 de jun. de 2010

Futebol sangue e liberdade. (por 7D)

Nesta véspera de oitavas de final que é véspera de tudo e de nada, como em todo bom mata-mata copeiro, penso no Chile. Por uma cromoterapia ancestral sempre gostei das camisas vermelhas. Este sangue que é alma que corre no corpo e no campo, camisa sangue ao vento. Amanhã o sangue promete correr. As seleções chilenas costumam jogar qualquer competição como quem joga a Libertadores, o juiz é inglês e estes apitam como quem apita rúgbi. O sangue vai correr nas veias, nas camisas, no gramado.

Conversando com a bola de cristal sobre futebol e política lembro aqui de dois palcos futebolísticos que serviram como lugares de resistência aos Estados de exceção. Um destes lugares é o Defensores Del Chaco no próprio Chile. Ali 50.000 pessoas podiam gritar durante os jogos “Libertad, Libertad, Libertad” sem que a sangrenta polícia da ditadura Pinochet pudesse impedir. Outro célebre palco de resistência é o Camp Nou. O Nosso Campo como chamam os catalães torcedores do Barcelona era o único lugar da Espanha onde se podia falar catalão sem que a sangrenta ditadura Franco pudesse impedir. Nesta mesma Europa de horrores um time literalmente deu seu sangue numa luta simbólica contra o regime nazista.

Depois da invasão da Ucrânia em 1939 o país ficou em frangalhos. O Dinamo de Kiev, principal time ucraniano foi desmembrado. No entanto, Losif Kordic um ucraniano de origem alemã tocava uma padaria na cidade, apaixonado por futebol tirou das ruas o goleiro Mykola Trusevych. A única exigência de Kordic era que Trusevych encontrasse seus companheiros de equipe e formasse um time de futebol para jogar a liga local que os alemães acabavam de fundar. A tarefa não foi fácil, mas em 1942 o F.C. Start foi formado por oito jogadores do Dínamo e três do Lokomotiv. Os oficiais alemães acreditavam plenamente em sua superioridade e deixaram o Start se inscrever na liga seguros da vitória ariana. No dia 21 de junho de 1942 o Start arrasou uma guarnição Húngara por 6-2. Logo depois soldados alemães sediados na Romênia foram aniquilados por 11-0. Mais quatro goleadas atordoantes se seguiram contra os melhores times dos militares alemães. As notícias chegaram aos ouvidos de Hitler. Apaixonado por futebol o Kaiser Adolph fez seu time, o FC Schalke 04, vencer 6 das 9 temporadas em que estave no poder. Sendo assim não deixaria barato para os insolentes ucranianos. Para mostrar a força das divisões alemãs os nazistas enviaram o Falkef, a seleção da Luftwaffe, para derrotar o inimigo. No dia 9 de agosto de 1942 teve início a “Partida da Morte”.

O estádio de Kiev estava lotado e a propaganda nazista já espalhava as notícias da derrota anunciada do timeco da Ucrânia ocupada. O F.C. Start seria obrigado a repetir a saudação a Hitler antes da partida. Aqui começa a mais sangrenta história de resistência tendo como palco um estádio de futebol. Ao entrar em campo o Falkef bate com orgulho os calcanhares, estende as mãos e grita “Heil, Hitler” a plenos pulmões. Todo o Start repete o gesto, com os pés descalços, e grita “Fizculthura”, o slogan soviético da cultura física. O povo nas arquibancadas vem abaixo e neste caldeirão de pressões a partida começa com o jogo aéreo da Luftwaffe dando resultado, 1x0. Não demorou muito para a multidão em Kiev comemorar fervorosamente. O Start vira o jogo e vai para o intervalo vencendo por 3x1. Enquanto descansavam daquela tensão de guerra um oficial da Gestapo invade o vestiário e ameaça a todos: se vencessem aquele jogo não haveria mais amanhã, todos seriam fuzilados. Os jogadores voltam a campo resignados, com uma decisão tomada. O Start é arrasador e a torcida é toda deles. Suas jogadas e gols são ovacionados, qualquer jogador do Falkef sofre uma terrível vaia toda vez que toca na bola. O F.C. Start era imbatível e marca mais duas vezes, chegando ao placar de 5x1. Com a ajuda do juiz os adversários nazistas descontam duas vezes, 5x3. Com o jogo chegando ao fim o baile ucraniano tem seu solo de gala. Mykola Korotkykh, um jogador de defesa, dribla 7 jogadores do Falkef, passa pelo goleiro e, à lá Garrincha, para a bola na linha do gol, chuta de volta para o círculo central e sai caminhando para o vestiário, dando as costas para o campo, desdenhando de tudo. O juiz encerra o jogo com a grandiosa Luftwaffe humilhada em campo. A torcida incendiada aplaude e grita sem parar durante quinze minutos, com o campo já vazio! A partida só termina dali a uma semana, depois de um último jogo vencido pelo Start. Todos os jogadores foram mandados para campos de concentração, somente dois sobreviveram para contar a história.

Pensando nestes lugares de resistência, nesta “wound culture” da bola sinto que o esporte é um simulacro da guerra no Chile, na Espanha, na Ucrânia e na Europa como um todo. Mas não acredito que seja assim no Brasil. Quando os presos do Dops decidiram torcer para a Tchecoslováquia contra o Brasil em 1970 o fizeram por 59 minutos, mas sucumbiram ao gol da virada marcado por Pelé aos 14 do segundo tempo. Quando Saldanha diz “você escala o ministério que eu escalo a seleção” para Médici, expõe todo o ridículo da apropriação política do futebol. Pelé estava cego, como dizia Saldanha. O país em pânico temia perder seu craque. Mas Pelé estava cego assim como o 1° de Abril de 1964 foi o dia dos cegos. O Pelé calado é um poeta.

No Brasil futebol é muito mais que pátria, no Brasil futebol é mátria, feminina como a bola que é a razão de tudo.

7D

PS1: Todo o ucraniano que guarda seu ingresso daquela partida tem um assento vitalício no estádio Zênit em Kiev.

Nas fotos:

1 - Monumento aos heróis do FC Start, estádio Zênit, Kiev.

2 - Memorial para os mortos do FC Start em Siretz, Ucrânia

3 - Sobreviventes Goncharenko e Sviridovsky em visita ao monumento no estádio Zênit

4 - Cartaz promocional do jogo FC Start x Flakelf - Domínio Público Ucraniano

5 - Paul Radomski (foto de 1935), comandante do time nazista derrotado.


PS2:

Nos anos 80 essa história inspirou o bizarro e maravilhoso Fuga para a vitória, do diretor John Huston de sucessos como Relíquia Macabra! O filme tem um elenco estonteante: Sylvester Stallone, Michael Caine, e os ex-craques Pelé, o argentino Ardilles e o inglês Bobby Moore. No vídeo a hilária cena do Pelé dizendo que nasceu em Trinidad e aprendeu a fazer embaixadinhas com laranjas! I love the USA!



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